Especial Fita Bruta: Raça Negra

No dia 12 de outubro, o Fita Bruta lança um tributo especial em homenagem ao grupo Raça Negra. Estamos ajeitando o material e dando os últimos retoques nas ideias e gravações que a moçada que circula aqui pelo Fita está arranjando. A convite do jornalista Jorge Wagner, idealizador do tributo, o também jornalista Carlos Eduardo Lima, o CEL, preparou um texto sobre o grupo e sobre o tributo. Aguardem.

BAIXE: JEITO FELINDIE | TRIBUTO AO RAÇA NEGRA

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Não adianta evitar, você sempre irá passar pela periferia. Quando isso acontecer, se tiver sorte, você será apresentado ao samba. Não me refiro apenas ao ritmo, mas ao todo proporcionado. E não há necessidade de tanta tradição para legitimar canções e mestres. O samba já é tradição, veio de outro tempo, sempre estará lá, aferindo então ao ouvinte, uma passagem de ida e volta a outras épocas, as quais você decide. Sempre será um tempo de amor, de ingenuidade, porque o samba é das calçadas do subúrbio em dias de sol, onde não pode haver nada de mal. É das crianças correndo atrás da bola numa rua sem saída, onde, igualmente, não é permitida  sequer a conjectura do menos que ideal.

Você pode ser da Zona Sul do Rio ou do seu equivalente em cada cidade do mundo. Como já dizia Billy Joel, você pode ser uma “uptown girl”, mas o samba te sequestrará para onde a geografia econômica pinta em cores mais escuras no seu mapinha do livro da escola. Onde tem mais gente, onde tem mais comércio, onde tem mais carros velhos, onde tem pipas no céu, onde tem mais samba, como já dizia outro compositor, Chico Buarque. O Raça Negra, meus caros, é sinônimo de samba, neste sentido amplo, metade estatística, metade abstração. É música, antes de tudo, com a intenção de falar sem escalas ao coração. Este coração “que já bate pouco de tanto procurar por outro”, como cantava aquela canção do Tunai, do início da década de 1980. É uma música que escrutina a escuridão do peito com a única intenção de trazer luz. É o subúrbio idealizado, com ares de Paraíso, que quer dar ao teu coração a sensação de passear de mãos dadas na pracinha do coreto, sem ingenuidade de achar que o lado mais discreto da mesma praça comporta um espaço propício para um contato, digamos, mais imediato do terceiro grau.

Quando Raça Negra surgiu, lá nos anos 80, o mundo era outro. Luiz Carlos e seus amigos eram fascinados por outra expressão musical de subúrbio, a Jovem Guarda. Nunca a perderam de vista no trabalho que erigiram a duras penas. Finalmente chegaram no topo das paradas do ínício dos anos 90. Muitos analistas ocos de sentimento atribuem esta escalada irrefreável do Raça Negra ao estrelato como uma consequência da inclusão social de classes menos favorecidas o que, permitam-me, não explica totalmente a equação. Boa música, com bons arranjos, com teclados fazendo as vezes de metais e cordas, vocais azeitados e capazes de fazer da língua presa um trunfo a favor, são indicativos de talento – uma linguagem, portanto, universal e independente de credo, cor e condição social.

As canções do Raça Negra me chamaram a atenção lá por 1994/95, tempo em que namorava uma menina que morava no Méier, Zona Norte do Rio. Depois vieram à tona novamente quando conheci outra moça, dessa vez, residente no bairro de Bonsucesso, subúrbio da Leopoldina. É o que eu digo: o menino de Copacabana, qual um Cândido Mariano Rondon musical, adentrava o terreno do rincão mais guardado pelas esquinas e radinhos de pilha em trailers de cachorro-quente, para descobrir carinho e quentura musical em forma de três, quatro minutos.

Raça Negra é isso: é amor, é cartão de aniversário de namoro com o Garfield na capa, é festa de quinze anos, é almoço de domingo na casa do parente distante ou na churrascaria que fica ao lado do mercadinho em que a família tem conta e pode pedir fiado pro dia seguinte. Isso tudo constitui um painel emocional que todos já experimentaram, isso tudo, quem sabe, pode ser o samba, a Jovem Guarda, a música, juntos, assumindo formas e valores que vamos levar pra sempre na memória.

Este tributo ao grupo, marcado para sair aqui pelo Fita Bruta no dia 12 de outubro, é uma maneira de expressar gratidão por esse beijo roubado que o samba e o subúrbio nos dão nessa vida. Repito, não há como escapar ou evitar. As bandas e artistas responsáveis pelas versões, cheios de informação musical que vem de outras terras, não ficaram imunes ao poder moderador e executivo da música do Raça Negra, tanto que não está sendo nada complicado, em termos técnicos, trilhar as veredas abertas por Luiz Carlos e seus amigos, no escuro da noite dos sentimentos. Tem sido preciso, no entanto, pedir licença para capturar tudo o que há de mais brasileiro e imaterial nessas canções para fazê-las passear na tal pracinha do coreto a que me referi lá em cima. O Raça Negra, pai e mãe gentil, concede permissão e celebra, onde estiver e onde ouvir, a certeza de que modificou, cativou e conduziu muitas vidas por essas bandas americanas do sul desta bolota azul e branca.

Aguardem, ouçam e tentem ficar imunes.

Carlos Eduardo Lima é colunista do Scream & Yell e apresenta o programa Atemporal na Rádio Vitrola todas as quintas-feiras, 9 da noite.