Ele diz “estou triste” nas versões de estúdio (leia) e ao vivo de “Abraçaço”. Na verdade, Caetano Veloso está cansado e não está muito disposto a esconder o fato. Não precisa estar nas mesas de reunião entre emissora e gravadora para ouvir a confissão da boca do próprio artista. No palco do Vivo Rio, casa de shows localizada no Aterro do Flamengo, a postura de Caetano é, no mínimo, sem êxtase. E, como você pode notar pela avaliação do álbum que estamos dando, em nada isto pesa a qualidade da versão ao vivo do álbum que encerra a — informalmente assim conhecida — trilogia Cê.

Caetano está cansado. Foi decepcionante ver o exato show em que este registro foi gravado. Mas conseguiram salvar “Abraçaço” da falta de educação do público — que, aqui, por acaso, era o carioca; isso acontece em um baladeiro Brasil por inteiro. A locação é um erro grave. Poucas pessoas derramam pela boca orgasmos depois de um show no Vivo Rio. Os jovens arrebatados pela obra setentista do compositor (gostar de “Transa” é uma obrigatoriedade para muitos deles) se misturavam a pessoas que não entendem muito bem porque há um solo de guitarra em uma música de Caetano Veloso — acostumaram-se com figurino-terno-homem-classudo adotado logo após os anos 80 pelo cantor. É uma experiência esquisita estar no Vivo Rio e o repertório de “Abraçaço”, até agora ainda de poucas intimidades com o grande público, absorveu todos os vícios daquela noite quase chuvosa do Rio de Janeiro. Todos os vícios de quem acha que tomar Red Bull é maneiro.

Na gravação, não é difícil ouvir as conversinhas que foram um absurdo da falta de educação — sintoma de uma era — durante a gravação. Próximo aos banheiros a dos bares, grupos enormes não entendiam muito bem que músicas desconhecidas eram aquelas. Algumas, com mais de seis minutos, como “Um Comunista”, despertavam uma vontade incrível de saber como ia ser o fim de semana do colega ao lado que estava por chegar. O que é uma pena para muitos dos fãs da capacidade fantástica de Caetano em repercutir-se ao vivo.

Os motivos são óbvios e também sutis. Caetano é um artista completo acompanhado de uma banda que, desde 2006, entendeu muito bem o que se era pra ser feito e o que era pra ser inventado. Fora isso, a discografia do baiano mostra que os repertório dos registros ao vivo possuem poucas falhas, muitas surpresas e quase sempre nuances para serem percebidas no palco. Como em toda as turnês desde “Cê”, há surpresas encantadoras no repertório. “Abraçaço” ao vivo traz “Triste Bahia”, “Reconvexo” e, principalmente, “Eclipse Oculto” impecavelmente para perto dos contornos dos álbuns recentes e “Alguém Cantando”, que vem sendo usada (brilhantemente) por Marcelo Jeneci nas apresentações ao vivo da canção “A Vida É Bélica”. São íntimas de “Zii e Zie” e também de “Cê”. Há também a beleza de sabermos todas as músicas de “Abraçaço” como cativantes — cada qual a sua moda — em suas versões ao vivo. O hit recente “A Bossa É Nova” e o coro alto no bordão, “Funk Melódico” e Caetano se embolando no rap, a faixa-título e sua coreografia hindu que une toda a banda e dá o tom da capa deste trabalho, a confissão de “Estou Triste” — a frase sobre o quarto frio do Rio é certamente inesquecível. Além de tudo isso, Caetano sabe entender as coisas.

É antes de “Você Não Entende Nada” que ele pergunta “cadê o Amarildo?”. Sabe ou não sabe das coisas, esse cara? Sabe. Meses antes, no Circo Voador, tocara “Um Índio” logo após criticar o jornal O Globo que, responsável por cobrir o cotidiano da cidade, não deu capa para os absurdos de tratamento que a Prefeitura estendia aos índios da Aldeia Maracanã. Caetano também entende que é possível que “A Luz de Tieta” desperte um sentimento misto de breguice e alegria extrema em uma canção que nasceu arrebatadora e de tão fácil em seu refrão acabou também desvirtuando-a. Ao ver, no Circo e no Vivo Rio, aquela multidão entoando em uníssono o refrão, fica claro todas as habilidades presentes: as artísticas de Caetano, Pedro Sá (guitarra), Ricardo Dias Gomes (baixo) e Marcelo Callado (bateria) e as de pouco refino de uma maioria mimada da plateia que paga R$ 50 em uma camisa com a cara de Caetano porcamente estilizada com a frase “A Bossa Nova É Foda”, mas não consegue pagar para ouvir o álbum no iTunes, na loja física ou no camelô.

Não. É melhor conversar. E, por isso, o mérito de “Multishow Ao Vivo: Caetano Veloso – Abraçaço” é de um todo de produção. Não soubesse desses relatos, o ouvinte certamente acreditaria que os momentos ali registrados foram de êxtase tranquilamente comparado ao que tivemos no show de mesmo repertório, só que no Circo Voador. Não foi e, por isso, taí um outro ótimo disco ao vivo de Caetano Veloso na conta. No entanto, há um pesar: boa parte da imagem construída em torno e que veste como manto Caetano é vinda das posições que o artista teve desde que emanou como compositor inquieto vindo da Bahia. Quando deixa-se envolver sem manifestar-se com tesão, cruel e de pau duro, Caetano é um artista em fade out tão patético quanto o que encerra este registro. Parece que alguém deixou a mão pesada no mouse e a curva em cima da onda sonora é grotesca.

Eu não reconheço Caetano nessa forma. E é bom dizer que, assim, ele só tem se manifestado fora da música. Em cima do palco e no estúdio, Caetano vem muito bem. “Outro”, canção-manifesto do álbum “Cê” (e a que encerra-se no tal fade out), deixa, ao menos, uma esperança de que o artista ressurja mais forte diante das imposições burocráticas. O público que o aclamou como o segundo melhor show de 2013 não era o que estava no Vivo Rio. Se estivesse, sairia decepcionado com o show e encantado com o trabalho de ourives realizado por Daniel Carvalho, responsável pela captação e masterização do álbum.

Caetano, você mente quando diz “tenho muito orgulho de conseguir atenção e respeito por ‘Um comunista’, música que dura 10 minutos e tem na letra certas dicções meio didáticas algo irregulares. Acho que muita gente pode gostar de ver e ouvir o que foi gravado num Vivo Rio lotado e participante. Sinto algum prazer em ter esse objeto para exibir”. É mentira. Não tenho medo de o contradizer porque nada disso aconteceu. E, como conheço você e sua obra, sei também que não há orgulho algum de sua parte. Descanse, livre-se das garras do jaguar e que, torçamos, o império dos burocratas nunca mais chegue ao coração da sua obra.